A 'coisificação' da criança

No recente estudo de opinião efectuado pela Eurosondagem, 45,5% dos inquiridos concordam com o casamento homossexual, contra 49,5%, que se opõem. Contudo, à pergunta "E com a adopção por casais homossexuais?", o resultado do "não" (68,4%) mais que triplica o do "sim" (21,8%).Um número significativo dos inquiridos - embora não maioritário - concorda que a união de duas pessoas do mesmo sexo possa ser integrada na categoria de um casamento civil, porque, julgam eles, o contrário significaria uma discriminação. Não têm tempo, paciência ou liberdade de espírito para pegar na questão e pô-la no seu lugar certo, nem que seja por um mero exercício intelectual: não há discriminação quando se trata diferentemente o que é diferente, nem o que é diferente passa a ser igual através da alteração de alguns artigos do Código Civil. A única consequência será destituir de qualquer sentido o casamento civil, que, ao perder os seus pressupostos e objectivos, fica reduzido a um contrato subtraído à liberdade contratual das partes, por uma inexplicável ingerência do Estado. Porque se duas pessoas do mesmo sexo se podem casar não há razão para proibir o casamento a termo certo (5, 10, 20 anos) ou o casamento poligâmico (um homem e três mulheres, uma mulher e dois homens). Fazia mais sentido a devolução deste contrato às partes, hetero ou homossexuais, permitindo que cada um estabelecesse livremente o modelo da sua união. Quanto à segunda pergunta, isto é, se concorda ou não que casais homossexuais adoptem crianças, quase metade dos que antes diziam "sim" ao casamento dizem, agora, "não" à adopção. É que enquanto o casamento só envolve os próprios, a adopção implica terceiros, crianças que não têm capacidade de exprimir a sua vontade e, por isso, precisam de quem as represente. Ora, sendo ao Estado que compete esta função, e sendo o Estado, ele próprio, o legislador, na prática as crianças ficam sem representante que defenda o seus superiores interesses. Aqui a situação complica-se e, à cautela, quem antes dizia sim passa a dizer não.A ausência de debate permitiu que uns ocultem, e muitos desconheçam, um inexorável nexo de causalidade: o casamento dos homossexuais acarretará, automaticamente, o direito a adoptarem. Também aqui, basta um mero exercício intelectual. De facto, assentando a iniciativa legislativa no princípio da igualdade, uma vez esta estabelecida por lei, não poderá manter-se uma capitis diminutio em nome da diferença. Porque é ela - a diferença - que cria dúvidas quanto à adopção, dúvidas que terão de ser engolidas após a aprovação da lei sob pena de se estar a consagrar casamentos de primeira e casamentos de segunda, ao arrepio de todo o discurso oficial e, julgo mesmo - agora sim -, da Constituição.É esta a verdadeira questão. Não estamos perante um mero exercício intelectual, nem no âmbito restrito da contenda política. É mais grave, é mais sério. As crianças adoptáveis são crianças privadas, por diversos motivos, dos seus pais biológicos. Vêm de famílias tão ausentes que se tornaram inexistentes e são entregues à tutela do Estado, a quem compete providenciar um novo projecto de vida que passa pela realização do direito de cada criança a ter um pai e uma mãe adoptivos, na falta dos biológicos. A tarefa é enorme e só quem nunca lidou com estas crianças, os seus percursos, as dúvidas e angústias na construção de um novo destino assente no respeito absoluto pelo melhor interesse de cada uma delas, pensa que uma promessa eleitoral transformada em lei pelo Parlamento, sem um maior escrutínio da sociedade, pode varrer todos os valores e princípios que enformam o sistema de protecção dos menores.Esta lei pode ser a consagração da "coisificação" das crianças, a sua utilização como uma coisa, um adorno de uma mera simbologia. Uma irresponsabilidade atroz para a qual ninguém recebeu mandato.

Maria José Nogueira PintoDN 2009-11-12 às 01:04

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7 comentários:

Jorge Freitas Soares disse...

Não deixa de ser curiosa a forma como é terminado o artigo, sobretudo por quem ao longo do mesmo não deixa de utilizar a adopção e em consequência as crianças na luta contra o casamento homossexual, as crianças não são armas de arremesso, não podem ser.

Existem em Portugal 12000 crianças institucionalizadas, 12000 crianças entregues ao estado e que na sua grande maioria vão viver e crescer numa instituição e sem nenhuma família, porque é que em lugar de as estarmos a utilizar como arma de arremesso numa luta em que elas não deviam ser chamadas nem usadas, não nos preocupamos com ver porque é que há tantas crianças sem projecto de vida, tantas crianças sem família, tantas crianças que crescem e vivem sozinhas.

Que tal irmos a um centro de acolhimento e perguntarmos às crianças que lá estão e que anseiam por uma família se elas se importam se em lugar de um pai e uma mãe a família pode ter dois pais, ou duas mães, ou só um pai, ou só uma mãe? será que elas preferem estar a vida toda numa instituição?, será mesmo?

Jorge Soares

David Polido disse...

"Não deixa de ser curiosa a forma como é terminado o artigo, sobretudo por quem ao longo do mesmo não deixa de utilizar a adopção e em consequência as crianças na luta contra o casamento homossexual, as crianças não são armas de arremesso, não podem ser."

Penso que, aquilo que o artigo também diz, é que, o Governo utilizou a palavra "discriminação" dos homossexuais para permitir o casamento entre os mesmos na tentativa de angariar mais votos. Mas não estará esse mesmo Governo a discrimina-los (os homossexuais)ao não permitir a adopção de crianças por homossexuais?
O mesmo se prende com o inquérito colocado aos inquiridos: ninguém quer discriminar os homossexuais, dizendo que sim ao casamento dos mesmos mas, depois, a mesma maior parte, diz que não à adopção. Penso que não são as crianças que estão a ser utilizadas como arma de arremesso, mas sim, a consciencia de todos nós ao responsabilizarem-nos pela discriminação.
E agora sim, também pergunto eu: Quem responde pelas crianças se querem pais homossexuais ou heterossexuais?
É natural que elas não saibam responder numa primeira instância (idade), mas quando começarem a ter noção e houvirem os amigos falararem em "pai" e "mãe" não lhes fará um pouco de confusão?
Será melhor pais homossexuais, heterossexuais ou uma instituição?
Eu nunca visitei uma instituição mas, sei que se muitas estão lá é, devido ao processo moroso de uma adopção, não por falta de pais heterossexuais a quererem adoptar.

Jorge Freitas Soares disse...

David

Sou pai biológico, uma filha, e adoptivo, dois filhos, por acaso a minha filha é branca e os irmão adoptados são mulatos, será que quando os amigos começarem a perguntar porque é que eles tem pais e uma irmã branca, eles não se vão sentir confusos? Será que eu não os devia ter adoptado?

A discriminação combate-se com educação, eu sei que sou capaz de ajudar os meus filhos a enfrentar a vida na sua diferença, assim como os homossexuais serão capazes de ajudar os seus filhos a enfrentar a diferença, afinal, quem mais que eles está habituado a sobreviver na discriminação?

O argumento das perguntas dos colegas na escola é pobre e só mostra como vivemos numa sociedade que vive de aparências e não é capaz de enfrentar e vencer os seus medos.

Existem 12000 crianças em instituições porque falta valor a juízes, assistentes sociais e procuradores, porque se dá sempre primazia à família biológica em lugar de aos afectos, e não há quem seja capaz de mudar isto.

Jorge Soares

David Polido disse...

Tal como disse no seu primeiro post: "as crianças não são armas de arremesso, não podem ser.", afinal de contas, quem as utiliza como tal, é o próprio Jorge.

Se "o argumento é pobre" não deixa de ser realista e não será equiparável às perguntas utilizadas pelo Jorge, como pergunta de arremesso.

Tal como o Jorge é pai de crianças adoptivas, também eu sou amigo e conhecido de homossexuais que defendem o não casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Atenção que o que aqui está eu causa não é a felicidade das mesmas (crianças), pois como eu referi também, as mesmas crianças podem ser adoptadas por famílias heterossexoais e, como eu próprio também referi, as mesmas crianças que se encontram nessas instituições, encontram-se lá não por falta de pais adoptivos heterossexuais que as querem adoptar, mas sim pela dificuldade e borucracia que existe, pois também eu quero a felicidade delas.

Mas se realmente o que está aqui em causa é a felicidade de tudo e todos, vamos também votar sim à bigamia, às drogas e ao aborto, a tudo aquilo que torna essas pessoas felizes. Porque não? As pessoas são livres de serem felizes à sua maneira, certo?

O que eu defendo é uma base de família, constituida por Homem e Mulher, tal como o seu e de muitas outras pessoas heterossexuais. O que eu defendo é o não banalizarmos tudo em deterimento da "felicidade" de alguns, para serem "mais felizes" e para que não nos possam acusar de descriminação.

ETIMOLOGIA: A palavra casamento é derivada de "casa", enquanto que matrimonio tem origem no radical mater ("mãe") seguindo o mesmo modelo lexical de "patrimônio". Também pode ser do latim medieval casamentu: Ato solene de união entre duas pessoas de sexo diferente, capazes e habilitadas, com legitimação religiosa e/ou civil.

Mas é só a minha opinião...

Jorge Freitas Soares disse...

Por acaso eu diria sim à liberalização das drogas e disse sim ao aborto, e há muitos países onde a bigamia é legal....

Sempre pautei a minha vida por um principio que diz que os meus direitos acabam exactamente onde começam os dos outros, e eu não tenho absolutamente nada a ver com os gostos e preferências das outras pessoas, é evidente que há coisas que me chocam, a religião por exemplo é uma delas, mas seria incapaz de por exemplo pedir uma lei que impeça que as pessoas tenham religião só por que eu não tenho. Dito isto, se as pessoas se querem casar ou não, eu não tenho nada com isso e acho que ninguém deveria ter, eu nem aos meus pais pedi autorização para me casar. Além disso, sou contra o casamento, sempre achei que não é um papel que amarra duas pessoas, e que a existência do papel é muitas vezes desculpa para muitíssimas coisas más, mas longe de mim pedir uma lei para acabar com o casamento.

Não entendo porque é que diz que o argumento é válido, efectivamente as crianças podem ser muito más, mas não será tão mau gozarem porque a criança tem dois pais como por serem negras e terem pais brancos?

As crianças são o espelho dos pais que tem, e se os pais discriminam e são racistas, elas também o serão, e como é que se combate isto? é impedindo a adopção?, não, claro que não, isto combate-se com educação.

Quanto à sua pergunta sobre se as crianças querem pais homossexuais ou heterossexuais, como lhe disse, eu já adoptei duas vezes e conheço muitas crianças que foram adoptadas, podia estar aqui horas a explicar, mas há coisas que só passando por elas se podem entender... acredite.

Quanto à sua definição de família,deixa de fora uma enorme parte da nossa sociedade, que são os pais e mães solteiras, acha que também se deveria impedir a adopção por singulares?.. e retirar os filhos aos pais solteiros?

Jorge Soares

David Polido disse...

"Por acaso eu diria sim à liberalização das drogas e disse sim ao aborto, e há muitos países onde a bigamia é legal...." o que não significa que seja o caminho correcto a seguir.

Quanto à minha definição de família, não o fiz, mas sim de casamento. O que disse em relação à Família é que a base deve ser Pai e Mãe, Homem e Mulher. Tudo o resto que referiu de pais solteiros ou viúvos, são derivados a várias circunstâncias da vida, que serão sempre muito dificeis e por vezes impossiveis de controlar.
E sim, penso que a preferência deveria ser sempre dada ao casal e só depois a pais singulares.
Em relação a retirar um filho a pais solteiros, a pergunta é pouco absurda e até provocatória e sei bem onde o Jorge pretende chegar. É lógico que não se pode analisar uma questão dessas, sem saber os motivos do pai/mãe ser solteiro, quais as condições que levaram a essa situação. Cada caso é um caso. Normalmente, e repito, normalmente, os pais solteiros são-o, porque, ou não foi uma gravidez planeada e um deles não assume a sua responsabilidade ou então porque existe um divorcio (ou então separação por morte do conjuge). Não vejo aqui nenhuma conexão possivel com adopção de pais homossexuais :(.
Mas também sabe (e acredito que muito bem, por experiênia própria) que na adopção é bem diferente e terá de ser, se não também teriamos pedófilos a adoptar e não queremos isso, pois não?

Continua no entanto a utilizar as crianças como "coitadinhas" porque não haver quem as adopte, quando na verdade existe uma lista enorme de espera para adopção, por casais heterossexoais. As crianças que se encontram em instituições não estão lá por falta de quem as queira adoptar, mas sim, como já referi, devido a borucracias.

Em relação à religião, não será tanto ela que o choca, mas sim a Igreja, que é feita de Homens e por Homens.

E tem toda a razão em relação à liberdade. A minha acaba onde começa a dos outros. E se os outros têm a liberdade de se manifestar a favor eu, também sou livre de me manifestar contra. Tal como o Jorge acredita em certos principios e o chocam outros, a mim acontece exactamente o mesmo. Cabe a cada um de nós "lutar" por aquilo que acredita.

Eu acredito na base do casmento constituida por Homem e Mulher.

Anónimo disse...

Jorge, antes demais felicito-o pelo gesto e opção de vida por ter adoptado duas crianças. Infelizmente sabemos que nem todas as pessoas têm a sua sensibilidade e coragem de tomar essa opção que tanto peso tem na experiência de vida, no casal, nos seus filhos biológicos, enfim, em toda a vida familiar.
1. Posto isto, deixe-me acrescentar que só irreflectidamente ou então sem conhecimentos mínimos de desenvolvimento infantil (o que, pelo que vejo, não será o caso) é que poderá afirmar que uma criança é capaz de tomar uma decisão com este peso.
Sejamos realistas! A noção de realidade das mesmas é totalmente deturpada assim como não têm qualquer noção de consequência das suas acções mais banais, quanto mais de uma decisão de uma vida! Se há adultos que nem o são...
2. O facto de algo ser legalizado não o torna correcto.
3. Permitam-me discordar, mas se a vossa liberdade interfere na minha vida, então ela não termina onde começa a minha, mas terá que terminar antes. Uma mulher grávida já não está sozinha, já não pode tomar uma desisão pela "sua" liberdade. Desde o momento da concepção que ela tem obrigação de respeitar a liberdade de um outro ser. E aniquilando-o não é com certeza, forma de o fazer.